O auxílio-alimentação, concedido de acordo com os programas de alimentação aprovados pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social, não integra a base de cálculo das contribuições previdenciárias, por expressa previsão da Lei 8.212/91[1].
Trata-se de hipótese de não incidência qualificada, decorrente da lei que concede isenção à situação em apreço e, ao fazê-lo, exclui a parcela em comento da incidência tributária, independentemente de eventual investigação acerca da sua natureza remuneratória (ou não). Ou seja, ainda que o auxílio-alimentação seja entendido como remuneração e, portanto,a priori apto a atrair a exação previdenciária, ele não se sujeita às contribuições, pois há norma específica que exclui expressamente a incidência in casu.
Não bastasse a isenção expressa acima citada, a jurisprudência é pacífica quanto à não incidência das contribuições previdenciárias sobre os valores relativos ao auxílio-alimentação, ainda que fornecido por empresa não inscrita no programa de alimentação aprovado pelos órgãos governamentais (Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT), desde que o seu pagamento seja realizado in natura[2]ou mediante cartão ou vale[3].
Ademais, a isenção em questão é medida consonante com o direito social à alimentação garantido pelo artigo 6º Constituição da República Federativa do Brasil. Sendo a alimentação um direito básico assegurado pela Constituição, o seu provimento passa a ser um dever do Estado, que tem a incumbência de promovê-lo e garanti-lo.
Nesse sentido, a não incidência das contribuições previdenciárias a cargo dos segurados e do empregador sobre o valor total da alimentação – incluindo proventos e descontos – privilegia o direito social à alimentação, buscando viabilizar a sua efetivação mediante a sua desoneração.
Ao isentar, a norma desonera a atividade da iniciativa privada que busca apoiar a hercúlea missão imposta ao Estado de prestar a assistência alimentar, imprescindível à sobrevivência e premissa básica à dignidade da pessoa humana e ao direito à saúde, nos termos previstos pelos artigos 1º e 6º da Constituição. Em sua dimensão extrafiscal, a isenção tem a finalidade de fomentar a prestação particular de alimentação ao trabalhador, engajando os empregadores na concreção desse direito social dos mais relevantes, que visa garantir a própria subsistência humana.
A propósito, há muito, A. H. Maslow, em sua famosa pirâmide das necessidades, demonstra serem basilares aquelas que são fisiológicas, entre as quais está incluída a alimentação, pressuposta a qualquer ideia de dignidade da pessoa humana.
Diante deste cenário, eventual incidência de contribuições sobre o valor do auxílio-alimentação, representaria exigência paradoxal e verdadeira contradictio in terminis, na medida em que o Estado estaria a onerar iniciativa que busca colaborar com um dever seu, a fim de angariar recursos para que a União, ente político mais distante do cidadão, busque dele se desincumbir, com todas as notórias ineficiências e deficiências do binômio receitas e gastos públicos.
Por outro lado, a parcela descontada dos empregados também não poderia ser alvo de tributação em razão de sua natureza ser relacionada ao próprio exercício do direito à alimentação, realidade na qual não se manifesta qualquer capacidade contributiva. Tributar o benefício alimentar, porque e na parte em que foi suportado pela classe operária, agride qualquer lógica de política e racionalidade fiscal. Se o legislador afastou a tributação do auxílio-alimentação para a concreção de um direito tão basilar dos trabalhadores, não pode a União tributar a parcela deste custo vital que tenha sido suportada pelo próprio beneficiário. Tributar o ato de se alimentar, enquanto ato basilar para a sobrevivência, seria quase equiparável à tributação da respiração. Inexistindo signo presuntivo de riqueza, não subsistiria a legitimidade da tributação, mesmo tratando-se de contribuição previdenciária (vênia rogata aos que amesquinham o princípio da capacidade contributiva, que entendemos aplicar-se a todos os tributos não vinculados[4]).
Apesar da existência da previsão legal expressa e da jurisprudência já consolidada retro mencionadas, é cediço que nos casos em que o auxílio-alimentação tem o seu custo compartilhado entre o empregador e o empregado inúmeros contribuintes (quiçá a maioria deles) incluía, indevidamente, a parcela do auxílio-alimentação que é suportada por seus empregados na base de incidência das contribuições previdenciárias a cargo da empresa e dos segurados.
Embora o Poder Judiciário, quando provocado, já tenha se manifestado em diversas ocasiões em sentido desfavorável à incidência das contribuições sobre a parcela em comento[5], a Receita Federal do Brasil editou a Solução de Consulta Cosit 04/2019 por meio da qual manifestou o seu entendimento de que “o valor descontado do trabalhador referente ao auxílio-alimentação […] não pode ser excluído da base de cálculo das contribuições previdenciárias, independentemente do tratamento dado à parcela suportada pela empresa”.
Nesse contexto, demonstra-se relevante a compreensão da genuína natureza jurídica do auxílio-alimentação, bem como da eficácia da norma isentiva que afasta a sua tributação pelas contribuições previdenciárias, buscando identificar a legitimidade de eventuais exigências por parte da Receita Federal sobre a parcela descontada dos empregados para custeio do benefício alimentar.
Em interpretação do artigo 195, I, “a”, da Constituição, depreende-se que a União detém competência para tributar, a título de contribuições previdenciárias, parcelas que tenham natureza remuneratória, pagas em contraprestação pelos serviços prestados por pessoa física ao seu contratante.
Ao analisar a amplitude da expressão “folha de salários”, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em sua composição plena, que as contribuições previdenciárias podem incidir sobre ganhos habituais do empregado, a qualquer título, desde que preenchidos cumulativamente certos requisitos[6]. Nesse diapasão, podem ser extraídos como parâmetros estabelecidos pela matriz constitucional que a base de incidência das contribuições deve ser composta por parcelas (i) de natureza remuneratória (pagas como contraprestação pela atividade laboral); (ii) pagas com habitualidade; (iii) passíveis de incorporação aos proventos de aposentadoria e (iv) que não sejam objeto de exoneração por imunidade ou isenção.
A propósito, infirmando as premissas adotadas na Solução de Consulta Cosit 04/2019, vale ressaltar a natureza não remuneratória do auxílio-alimentação, haja vista a sua concessão para o trabalho, e não pelo trabalho. Sem alimentação, não há saúde e, ipso facto, inexistirá força laboral a ser prestada.
A par disso, a Lei 8.212/91 prevê um rol de parcelas que não integram a base de cálculo, conforme consta em seus artigo 22, parágrafo 2°, e artigo 28, parágrafo 9°, ainda que pudessem algumas delas se enquadrar nos requisitos para sua inclusão na base de incidência.
O artigo 175 do CTN prevê que a isenção exclui o crédito tributário. Em interpretação deste dispositivo, a doutrina mais atual[7]entende que a isenção não é dispensa de pagar tributo, mas sim hipótese de não incidência tributária. Por manifestação expressa do legislador, os fatos isentos, assim como os imunes, não são fatos geradores da obrigação tributária, muito embora sejam enquadráveis na hipótese de incidência[8].
Na teoria da incidência e da exoneração tributária, explica-se que a não incidência da norma pode se dar de duas formas: primus, não incidência simples (não subsunção do fato concreto à hipótese de incidência), ou, secundus, não incidência qualificada. Nesta última modalidade, o fato concreto se enquadra na hipótese de incidência, mas não atrai os efeitos previstos em seu comando normativo por força de norma de imunidade ou isenção. À toda evidência, fatos imunes e fatos isentos não são fatos geradores de obrigação tributária.
Trata-se, a previsão do artigo 28, parágrafo 9º, “c”, da Lei 8.212/91, de não incidência qualificada. O fato descrito como isento pela lei não está simplesmente fora do escopo da norma. Pelo contrário, ainda que se tenha fato que pudesse ser considerado como apto a atrair a incidência da exação, a lei isentiva a exclui do espectro de incidência. A isenção é, portanto, fator que impede o nascimento da obrigação tributária, pois, insista-se, o fato isento não é fato gerador, ainda que se enquadre nos contornos adrede descritos na hipótese de incidência.
Este é o caso dos valores relativos ao auxílio-alimentação fornecido em favor dos segurados.
Além da isenção sub examine, o artigo 457, parágrafo 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho determina que o auxílio-alimentação (ressalvado o seu pagamento em dinheiro) não integra a remuneração do empregado, não se incorpora ao contrato de trabalho e não constitui base de incidência de encargo trabalhista e previdenciário.
O Decreto 05/1991, por sua vez, em seu artigo 2º, parágrafo 1º, prevê a possibilidade de que o empregado participe do custeio do auxílio-alimentação in natura fornecido nos termos do PAT, tendo-o feito nos seguintes termos: “A participação do trabalhador fica limitada a 20% do custo direto da refeição”. Havendo o desconto, o seu montante passa a integrar o valor da alimentação, enquadrando-se, portanto, na hipótese de isenção de contribuições previdenciárias estabelecida no dispositivo supracitado.
Ao tratar da não incidência de contribuições previdenciárias sobre a verba em análise, as leis isentivas, tanto a Lei 8.212/91, quanto a CLT, não fazem qualquer distinção entre a parcela a cargo da empresa e aquela descontada da remuneração de seus colaboradores.
Assim, para fins de aplicação da norma exonerativa em tela, importa apenas a natureza e destinação dos valores a serem excluídos da incidência fiscal, os quais devem se referir a auxílio-alimentação, independentemente de quem arca com o seu custo, desde que respeitados os critérios definidos pela legislação.
Neste particular, a parcela descontada pela empresa da remuneração do empregado tem a mesma finalidade dos proventos por ela suportados. Em uma análise funcional e finalística, em relação à verba de alimentação, especificamente, proventos e descontos possuem, portanto, a mesma natureza jurídica.
A corroborar o acima exposto, diversas decisões judiciais têm reconhecido a não incidência das contribuições previdenciárias sobre os descontos destinados ao custeio do auxílio-alimentação[9].
Na Solução de Consulta Cosit 04/2019, a Receita Federal manifesta o seu entendimento de que o valor descontado do trabalhador referente ao auxílio-alimentação faz parte de sua remuneração e, por isso, não pode ser excluído da base de cálculo das contribuições previdenciárias, independentemente do tratamento dado à parcela suportada pela empresa. A RFB restringe a sua fundamentação à análise acerca do pretenso enquadramento dos valores descontados do empregado no conceito de remuneração, omitindo-se gravemente em relação às normas isentivas. Com efeito, ela se esquiva (convenientemente?), em patente incompletude, da análise da regra de isenção constante do artigo 28, parágrafo 9º, “c” da Lei 8.212/91.
Mesmo que se entenda que o valor descontado tenha ostentado natureza salarial em momento pretérito, ele não deve estar sujeito à incidência. Com efeito, independentemente de ser ou não salário, a verba é objeto de uma norma de isenção específica e, portanto, deixa de integrar o salário-de-contribuição, não devendo ser alvo de incidência da contribuição previdenciária patronal, tampouco da contribuição previdenciária a cargo do segurado.
Repise-se que, ao tratar da não incidência de contribuições previdenciárias sobre a verba em análise, a Lei 8.212/91 não faz qualquer distinção entre a parcela a cargo da empresa e aquela descontada da remuneração de seus empregados.Revela-se, assim, a incongruência e a incompletude do entendimento adotado pela Receita Federal em face da norma que deveria guiar-lhe a atuação, ao pretender criar tratamento diferenciado quando a lei não o fez.
Em atenção ao artigo 6º da Constituição e aos valores que o inspiraram, aparcela in natura do auxílio-alimentação foi expressamente excluída da base de cálculo das contribuições, sem que fosse prevista qualquer condicionante em relação ao sujeito que arca com o ônus da referida despesa. Por essa razão, a referida isenção tem natureza objetiva, que lhe confere amplitude para abarcar quaisquer valores que sejam destinados ao financiamento do auxílio-alimentação, independentemente de quem o custeie.
Texto por: Paulo Roberto Coimbra Silva
Fonte: Site Conjur